Lendo Canção
Desde o Projeto 365 Canções (2010), o desafio é ser e estar à escuta dos cancionistas do Brasil, suas vocoperformances; e mergulhar nas experiências poéticas de seus sujeitos cancionais sirênicos.
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27 julho 2025
Poemas do amor
O poema "saudades" - "assim / saudades sim / simples / como um brinco tupiniquim / um coco de roda / cirandas voltas de tu em mim" - está entre meus poemas de predileção. Publicados no livro Barrocidade (2003), os versos aliterados em /s/ figurativizam a mensagem, além de serem exemplar da poética de Amador Ribeiro Neto - naquilo que essa poética engenha ao presentificar o que a automatização da vida ordinária apaga. Transitando nas cidades, o eu poemático de Ribeiro Neto sacode memórias do prazer e convida a sensibilizar o corpo (do poema, de quem lê). Em POEMAS DO AMOR esse eu poético singulariza a pulsão de vida que há no sexo. Como um eco de "saudades", lemos no começo de "CADÊ": "busco / tu / nas cirandas / das buzinadas das ruas // nos cocos / das noites / cruas". Sem idealizações moralistas, essa "busca" se desdobra em versos como "deu / volta por cima / por baixo / de lado / atrás / entre // deu / até / parar / de / querer / dar / e / ter / vontade / de recomeçar", em "VOLTA". Novamente e sempre, a circularidade, o trânsito, o desejo comichando e fazendo o sujeito ir indo (por que não?). Quem lê com atenção percebe que os versos de POEMAS DO AMOR trazem embutidos o paideuma de Amador, poeta que transa com, transa os autores de sua predileção. Em "CADÊ", Manuel Bandeira - "bela bela bela"; em "VOLTA", John Donne - "Before, behind, between, above, below". Esse paideuma está condensado no poema "Zé", dedicado a José Celso Martinez, em que os significantes proliferam verbivocovisualmente aquilo que interessa ao eu poemático de Amador Ribeiro Neto: o sumo (da língua), o suadouro (da linguagem), o simples (da palavra). Nessa concretude está o amor de quem "ia / fuder / com / a própria / vida // mas // foi pra sauna / arrumou / trabalho / casa / comida // voltou sarado / & / com gato / malhado", como lemos em "SAUNA". "No livro de Amador Ribeiro, nada de fissura ou frescura, a poesia é do gozo, o sôfrego desejo se realizando. (...) O que importa ao poeta é que a trama dos corpos não se arrefeça em dócil descrição, aqui a libidinagem desregrada do verso é a lei", escreve Jardel Dias Cavalcanti. Sem recalque, essa trama poética implode hipocrisias e outras tiranias do desejo controlado. Melhor do que isso só mesmo "joão você eu / eu você joão / você joão eu" circulando entre versos sem parar.
20 julho 2025
Performance
"A performance não é apenas uma forma de arte, uma intervenção ativista, um sistema de gestão empresarial, ou um exercício militar. Ela fornece uma lente e uma estrutura para compreender quase tudo". A nota lida a certa altura do livro PERFORMANCE sintetiza o modo como Diana Taylor entende e trata a palavra, o conceito e o ato. Digo "nota" porque o livro é apresentado como se performasse um "caderno de anotações", com uso de negritos, caixas altas e outras formas de destaque e interjeição. O livro é repleto de imagens (é possível documentar o ato performativo?) de performances que reforçam a ideia de que "vivemos em um mundo saturado de modelos e instruções para o sucesso: o como da performance". Nesse sentido o corpo de quem performa é suporte e arma contra o controle de governo, contra essa saturação de imagens que "circulam repetidamente até perderem toda sua força política". O corpo é lugar da performance, da intervenção, da ação - individual e coletiva, já que, por exemplo, a América Latina "só é visível por meio de seus clichês, da natureza de suas repetições performativas". Fica evidente desde o começo da leitura que o livro PERFORMANCE não está interessado em debater apenas a linguagem artística consolidada no mundo das artes dos anos 1960/70 e recorrente até nossos dias. Diana Taylor não cita estudiosos do tema como Paul Zumthor, Jorge Glusberg, Renato Cohen, Ruth Finnegan. À autora interessa a performance que intervém na vida, que, desautomatizando o olhar, promove crítica e justiça social. Todos os exemplos do livro vão nessa direção e conclui que "a busca por justiça é uma performance de longa duração. Embora as táticas e as circunstâncias mudem com o tempo, é a resistência e a perseverança que se mostram eficazes. A luta por justiça pode levar uma vida". Autora do livro "O arquivo e o repertório", em PERFORMANCE, Diana Taylor nos fornece importantes tópicos para pensar que "o arquivo também pode performar", já que "as performances operam como atos vitais de transferência, transmitindo o saber social, a memória e o senso de identidade por meio de ações repetidas". As análises sobre reperformance em contexto de "capital cultural", os comentários sobre a manipulação das pautas progressistas pelo capital e o elogio à "virada epistêmica causada por objetos corporificados de análise" são notáveis.
06 julho 2025
Canções não
"CANÇÕES NÃO é uma obra composta por um livro, disco e espetáculo". A nota na Ficha catalográfica dá conta das inquietações e inquietudes artísticas de Carlos Gomes. Poeta, pesquisador, cantor, performer, crítico, produtor cultural, um importante interlocutor do debate sobre as relações entre a palavra poética escrita e cantada e que, infelizmente, nos deixou muito precocemente. CANÇÕES NÃO é livro síntese dos interesses de Carlos Gomes. O som das aliterações em /s/ atravessa e une poemas que intentam "riscar o sulco mole da pele sonora o veio o vulto a voz de todos nós". Esse "nós" habita e transita a cidade palimpsesta de Recife - aldeia e mundo. Não é à toa, portanto, a dedicatória do livro: "para j. omard m. muniz de b. britto" - o nome assim, quebrado, como um som de maracatu, como a história contada nas pedras do Recife Antigo, onde "turistas nem imaginam / a cidade soterrada sob seus pés". CANÇÕES NÃO é para lerouvir os "ossosossosossosossosossosossosossosossosossos", como lemos numa página inteira - "sos ossos" é uma das leituras possíveis, quando o poema é lido em voz alta. "O mercado em ruínas abriga sob a sua enorme sombra / uma variedade incontrolável de vozes", lemos também. A voz poética de Carlos Gomes afirma que "a eletricidade dos corpos incorpora braços e instrumentos acústicos". Tem gente sob o asfalto, por trás dos escombros - e gente é outra alegria, diferente. CANÇÕES NÃO coloca essas vozes de gente para cantar em coro dissonante "a música da poesia / a poesia da música / cercados. circulações / fins do mundo / galáxias". Registre-se aqui o poema que mais me toca, por sua objetividade complexa, por seu desejo simples: "mãe inha / tá tudo escuro aqui / a lama derrubou a tevê da sala / quebrou, mãe / inha / chore não / ai, pai inho / o lobo derrubou a porta e as paredes de casa / quarto, sala, cozinha, banheiro / tá tudo espalhado em cima de mim / ai, / inha, inho / se encontrar as velas nessa bagunça / acende uma estória / tá quase escuro dentro de mim". No dia da notícia de sua morte, corri para reler esse poema. Voa, Carlos!
29 junho 2025
Anastácia e a máscara
O livro ANASTÁCIA E A MÁSCARA tensiona ética e estética brasileiras, com rigor formal e tema urgente. Henrique Marques Samyn promove uma revisão crítica do cânone, ou seja, estimula a imaginação daquilo que sempre esteve aqui - o corpo negro e a subjetividade negra -, mas que foi recalcado pelo processo de embranquecimento de nossa cultura, daquilo que definimos enquanto traços de brasilidade. Destaca-se a imaginação de Anastácia (título e imagem de capa do livro) e Rosa Egipcíaca, mulheres negras que precisam ser cantadas em prosa e versos para que suas memórias sejam cultivadas e se mantenham presentes. (A leitura de ANASTÁCIA E A MÁSCARA me lembrou que minha avó benzedeira tinha uma imagem de Anastácia no altar de sua casa no interior da Paraíba, à margem do rio, onde lavava roupa para ganhar a vida). O "nada" em destaque no poema "Na esquina, espreita a sombra" dialoga com o "nada" em destaque no poema "Soam mais alto as vozes", exigindo de quem lê a compreensão de que é uma poética o que está em jogo no conjunto de poemas Henrique. Essa poética é voz coral que imagina o que "ouve" (escuta) mais do que o que "houve" (aconteceu), já que o acontecido aparece dado nos livros canônicos, livros escritos pelas máscaras brancas. Manejando rigor formal e ancestralidade, o trovador Henrique canta - no caso de Anastácia, sempre com três quartetos e dois dísticos (todos em decassílabos); no caso de Rosa, os versos livres dão conta de presentificar os vários nomes dados a mulher por trás do mito, mas apoiados em redondilhas, metro mais comum na língua falada no Brasil. Por sua vez, na contramão do patriarcado, me parece que "Soneto ao não-jogador de futebol" é uma resposta às imposições do "macho, adulto, branco sempre no comando" e suas faces patriarcais que se revelam, inclusive, no uso dos metros e das regras historicamente legitimadoras de quem é ou não é homem. Assim como "Arte poética" inscreve o debate sobre ser ou não ser poeta: quem pode? Quem decide? As vozes filtradas por Henrique respondem. Em ANASTÁCIA E A MÁSCARA temos saber oral e saber livresco em tensão, em disputa sobre o que ficou e o que fica registrado na cultura.
30 março 2025
Impressões de viagem
Se para Murilo Mendes "poucos homens atingem sua época". Heloísa Teixeira é intelectual que atinge e provocava sua época de modo singular. Difícil encontrar algum momento ou movimento literário desde os anos 1960 no Brasil que não tenha sido comentado, criticado, analisado pela pulsão de vida de Heloísa. Atenta à palavra poética em suas várias possibilidades de comunicação e expressão estética, seus textos são leituras incontornáveis. Destaco IMPRESSÕES DE VIAGEM, livro fonte de muitas reflexões, não apenas sobre "cpc, vanguarda e desbunde", mas também sobre o estado de coisas enfrentado pelas artes e pela cultura nos anos 1960/70. Estado de coisas que reverbera ainda hoje: a dessacralização da literatura (para quem? por quem? quem escreve?) e a reauratização do(a) autor(a), em que pese certa "confusão" interessada pelo sistema entre poética e polêmica, por exemplo. Por sua vez, Heloisa é crítica implicada no corpus sob análise e realiza uma crítica que transita, ou, em suas palavras, que está em "deslocamento tático", incorporando o corpus do outro. Para a autora de IMPRESSÕES DE VIAGEM há naquele contexto de ditadura militar o clima paradoxalmente ufanístico e de “vazio” cultural: "o aperto da censura e a sistemática exclusão do discurso político direto acabam por provocar um deslocamento tático da constelação política para a produção cultural. Ou seja, a impossibilidade de mobilização e debate político aberto transfere para as manifestações culturais o lugar privilegiado da 'resistência'", escreve. Em dezembro de 1978, Heloisa observava que a capacidade de o sistema recuperar a contestação é surpreendente. A história de lá para cá confirmou o diagnóstico, tornando atemporal a pergunta da autora: "de que forma a biotônica ["potente", sic] vitalidade dos novíssimos [de hoje, podemos contextualizar] responderá e absorverá esses novos ares [de agora, idem]?". Mais do que um registro pessoal, IMPRESSÕES DE VIAGEM é método de pesquisa e projeta mundos no mundo experimentado na poesia brasileira recente.
16 março 2025
Peças íntimas
"O padre convidava alguns alunos: os mais aplicados, mais asseados, mais educados, para a aula de caligrafia gótica". A frase lida no começo do conto "A boa educação" encapsula os climas e as sensações que o livro PEÇAS ÍNTIMAS espraia ao longo de 17 narrativas tão luxuriosas quanto brejeiras. Tencionando cores de Almodóvar, voyeurismo de Pasolini e bastidores domésticos rodriguianos, Victor Hugo Adler Pereira apresenta um coro de vozes criadas entre a sacristia e o vestiário do quartel, compondo um sujeito integral-porque-fractal. "Em meio a essas vozes do passado, outros personagens se impuseram, esgueiravam-se entre memórias, distorcendo-as, refletindo-se na ficção", anota o autor. De fato, cada conto é um fotograma que vai lentamente montando o filme de uma vida desdobrada das questões enfrentadas pela geração do autor. "A loucura e o banimento espreitavam ameaçadores, os exemplos entre parentes confirmavam o perigo. (...) Os contos, em uma cronologia não muito rigorosa, apresentam cenas que provocam as indagações e dúvidas dos personagens, sobre questões como as relações de gênero e as definições identitárias, o envelhecimento e a morte", escreve Victor Hugo. O título do livro pulsa da expressão (algo) pudica do coroinha em estágio de nascente desejo: "Pensei no perigo de adentrar a sacristia com aquelas peças íntimas na mão - o pior, que nem me pertenciam", lemos em "Sursum corda! Habemus ad Dominum!". Padres, tios, homens de autoridade ou autoritários agem de modo irreversível na educação das várias vozes que lemos cantando em uníssono e sem moralismo no livro PEÇAS ÍNTIMAS.
09 março 2025
Oswald de Andrade mau selvagem
"Por um buraco da meia escocesa, verde e amarela, surge um pedaço caloso do meu pé velho que tanto andou". A anotação de Oswald de Andrade em seu "Diário confessional" (23/04/1951) dá conta de resumir bem o fim da trajetória de um dos mais anárquicos pensadores do século XX. Em OSWALD DE ANDRADE MAU SELVAGEM Lira Neto registra a vida e a obra desse sujeito que empreendeu o entendimento de nossa tropical melancolia. Se a biografia não revela nenhuma novidade sobre a persona satírica auto corrosiva do biografado, ela tem o mérito de passar em revista e organizar contextos e situações fundamentais para o pensamento plural de Brasil. Por exemplo, com rica pesquisa e senso de seleção, Lira Neto ajuda a entender porque a obra crítica e criativa de Oswald interessaria à Poesia Concreta, ao Teatro Oficina e à Tropicália. Há um investimento utópico (de ação!) na "pureza ingênua e [n]a revolta instintiva" da gente brasileira unindo ética e esteticamente cada um dos agentes desses movimentos. Mas Lira Neto não poupa o biografado, retratado também em suas contradições e canalhices. O que dizer do modo como Oswald tratou as mulheres com quem se relacionou? Herdeiro, Oswald penou encalacrado em dívidas; piadista, perdeu (quase) todos os amigos ao confundir "autenticidade" com grosseria; adepto do comunismo - "povo quer dizer o povo que trabalha, o povo que sofre, o povo oprimido e explorado", lutou até o fim (chegando a recorrer pessoalmente a Getúlio Vargas) para não perder privilégios de classe. Concomitantemente, o livro OSWALD DE ANDRADE MAU SELVAGEM mostra o pensador de ouvidos e olhos livres para o sambista Sinhô e para o palhaço Piolin; e de pé atrás contra o re-academicismo engendrado pelos então críticos universitários emergentes e excessivamente eurocentrados dos anos pós-Semana de 1922. Errado e errante, a obra de Oswald ainda carece de dentadas mais profundas. Pesquisas e livros como OSWALD DE ANDRADE MAU SELVAGEM é ótima leitura para quem queira devorar o antropófago cru ou cozido.
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